segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

A cigana

O dia estava solarengo, quente demais. As crianças assobiavam, comiam doces de digestão fácil, aguardando o autocarro que as levava dali para as suas origens. Do outro lado, um bar rodeado de homens que finalmente terminavam os seus ofícios, brindando esse instante com uma cerveja ou sumo. A disposição das cadeiras não era proporcional ao espaço envolvente, pelo contrário, todo aquele espaço gerava uma sensação de abandonado e impessoal. A senhora que servia ao balcão dava um certo calor ao vazio circundante. As falas, os risos das crianças, ao fundo, ao longe, permitiam a concentração para a leitura. Apenas uma mesa estava ocupada. De repente, entra para dentro daquele "albergue" alguém que, desde logo, despertou a atenção. Era impossível não olhar. A senhora sentou-se mesmo à minha frente. Tinha olhos cor de mel mas amargos. O corpo controlava a tensão e as emoções. As malas continham roupas descuidadamente colocadas, onde se viam os trapos a sair. Mas quem observasse aquela cigana diria que aguardava calmamente o seu meio de transporte. Observou-me. Trocamos olhares. Eu sorri timidamente, ela fixou os meus olhos e não sei explicar o que senti. Na altura, talvez tenha sentido, um olhar bonito, penetrante. Na altura pensei o que todos pensariam. Que aquela senhora aguardava a hora de partida para um lugar qualquer. Trocamos de novo o olhar e aquele olhar já me fez sentir algo mais. Um olhar entristecido, no corpo de uma mulher lutadora e forte. O brilho daquele olhar esmorecia e apagava-se, dando lugar a um brilho de lágrimas que tranquilamente corriam pelo seu rosto. O rosto sem expressão, o corpo parado, e o único movimento era gerado pelo brotar daquela lágrima. Num ímpeto e bruscamente dirige-se para o telefone e diz "sim, vem-me buscar, estou à tua espera". Aqui fiquei atordoada e expectante, para num segundo instante ouvir aquela cigana falar para longe, para alguém que eu não via mas que ela queria ofender e desabafar. Terá sentido que na minha presença, mesmo sem me conhecer de lado algum, poderia dizer o que lhe invadia a alma e destroçava o coração? Assim disse, "meu Senhor, ele não vai ficar com os meus filhos, eles são meus". Quando observo que esta cigana tinha o braço com sangue a escorrer, tenho que sair.
Ainda agora penso naquele olhar.

10 Maio 2005

Um comentário:

Anônimo disse...

Parece que tenho esse olhar mesmo á minha frente!!! Adorei a descrição do olhar da cigana.

Não gostei da sensação amarga de injustiça que o olhar dela me trouxe... Espero que tenha sido apenas resultado de um momento e não de uma vida.

Beijinho

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