sexta-feira, 26 de março de 2010

Na última reunião de condomínio, que decorria na ampla garagem do prédio, trazia a música tão alta que nem reparou naquele aglomerado humano. Um homem irrompe do grupo a gesticular “baixe o som!”.

Mais um dia, terminado em frenesim

Já não sabe os detalhes das actividades para amanhã, agarra na agenda antes de sair do carro, revê os afazeres que lhe roubam o tempo para o voluntariado no banco alimentar, adiado há um ano, para a visita ao pai que está em lista de espera, o tempo que deixou de ter porque assim tem sempre tempo para adiar o que dói. Essa atitude tão aplaudida por todos, quanto mais fizeres melhor, defeito aceitável para os amigos, valorizado no mundo do trabalho, o que acaba por escassear é apenas a coragem, sabe-o bem.

Eva corrige o olhar levando o rímel, a mala dos mil processos vai subir com ela, o som alto abandona a garagem e fica aprisionado no carro, diz a todos boa noite, e a reunião prossegue.

andrea

Aos mais destemidos, ouvia-lhes a previsão e o cálculo na frase “da próxima vez já não estavam cá”. Aos outros. A esses. Via-lhes no olhar as palavras, em desespero suspenso, no piso dos acamados. Ninguém sabia quem ela era, o que a levava a visitá-los todas as manhãs de sábado.
Era melhor morrer a viver assim, ressoava nos corredores.
A profundeza da afirmação ganhou impacto naquele cubículo, rodeada de cadeiras verdes e revistas sobre a mesa, à espera do carimbo no próximo exame médico, analisa friamente as possibilidades.
A avó dissera-lhe, em quatro anos, sempre que se despedia dela, que era a última vez, e nesse dia acertou.
(queria ter a certeza dela)
É jovem. Vive refém de hospitais, exames, salas de espera, rostos cinzentos, o dia da notícia, a irmã a chorar, a filha inês só tem três anos, as viagens por fazer, o dia de amanhã e todos os tratamentos ainda sem data e fim.
Hoje em dia há cura para tudo, dizem-lhe. E ela não quer saber.
Dirá à senhora do carimbo que é a última vez, e tal como a avó, acertará.

andrea

A extremidade dos cinco dedos não lhe adivinha a forma.
Encontro-lhe pequenas saliências, rodeadas de minúsculos poros, um ponto fundo que une o princípio e o fim.
Agarro-a na palma da mão. Afigura-se-me maior. Rodopio-a suavemente para a adivinhar. Transborda as linhas, quase chega à ponta dos dedos, fica rente às extremidades. Não a agarro inteira.
Atrevo-me com as duas mãos. Encaixe perfeito. Tenho a sensação que guardo, entre os dedos, um segredo inconfessável, redondo, esponjoso. O que a torna viva.
Elevo os dedos ao nariz. Hummmmm! Que maravilha! Que cheiro a terra, doce, a dias pequenos, a chuva, a pequenos-almoços com torradas e o que espremo de ti!

andrea

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