terça-feira, 2 de outubro de 2007

simplesmente perfeito... NUNO JÚDICE


JOGO
Eu, sabendo que te amo,
E como as coisas do amor são difíceis,
Preparo em silêncio a mesa
do jogo,estendo as peças
sobre o tabuleiro,disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.
POEMA
Podemos falar dos sentimentos, descrever
as impressões que nos ameaçam, e revelar o vazio
que se descobre na ausência um do outro: nada,
porém, é tão inquietante como a dúvida,
o não saber de ti, ouvir o desânimo na tua voz,
agora que a tarde começa a descer e, com ela,
todas as sombras da alma.É verdade que o amor não é
apenas um registo de memórias. É no presente
que temos de o encontrar:aí, onde a tua imagem
se tornou mais real do que tu própria,
mesmo que nada te substitua.Então, é
porque as palavras são supérfluas; mas como viver
sem elas? Como encontrar outra forma de te dizer
que o amor é esta coisa tão estranha, dar o que nunca
se poderá ter, e ter o que está condenado
a perder-se? A não ser que guardemos dentro de nós,
num canto de um e outro a que só nós chegamos,
sabendo que esse pouco que nos pertence é
tudo o que cabe neste sentimento.
PRINCIPIOS
Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.
Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.
Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor
Uma Explicação simbólica
Mas de onde vem a consciência do tempo, ou
o sentimento que determina a mais imprecisa das nossa
semoções? Refiro-me ao amor; mas
é a morte, que lhe está ligada, que obriga aque eu deseje a tua presença – ó flor mais viva desta
natureza morta. então, sei que o meu horizonte
é amanhã, definido pela linha exacta
que os teus dedos traçam entre mim e ti. Porém, no banco
em que nos sentamos, ouvindo o rio que corre,
apesar do calor, as tuas palavras são como esta água: mansas
e frias, ou duras e quentes, o que depende das circunstâncias
e das estações.
O que pergunto, no entanto, é o que faz
a duração do amor? E a resposta que dou tem a ver
com as próprias variações da alma. O que eu sei é
que ele é imprevisível como a própria cor dos teus olhos,
que depende das horas do dia; mas se a luz da tarde
perdura, e a tua voz declina com a ternura do poente,
é porque há uma explicação para a corrente das frases,
onde vejo as medusas da idade saírem do abismo do fundo
para a transparência vaga que os teus lábios me oferecem. Há
em tudo isto, um símbolo. E se a medusa pode ser
uma parte dele, a outra parte és tu que a conheces: o
caule partido numa divisão de tarefas, quando
ambos dividimos desejo e orações.
Agora, nada é mais simples do que isto. Encontramo-nos
a meio caminho. Pode ser que os dois pedaços do ramo
colem ; se isso não acontecer, porém, já nada pode mudar. O
que tem de colar são estas partes da alma que
trocámos um com o outro; e o símbolo é apenas aquilo
que, em cada um de nós, é
esse outro que guardamos.
FILOSOFIA
Mas que queremos da vida? É a vida? O
que se procura em cada segundo para se perder
em cada segundo? O tempo, assim, de nada
nos serve. Um dia, dando por nós próprios,
perguntamo-nos o que fizemos, por onde
andámos, que cidades e casas percorremos,
sem que uma resposta nos satisfaça. A
vida, então, limita-se a ser o que fez
de nós, sem que o tenhamos desejado, e
nada pode ser feito para voltar atás, nem
para restituir os passos trocados de
direcção, as frases evitadas no último
extremo, o olhar que se desviou quando
não devia. Ah, sim - e o amor? É isso
que queremos da vida? É verdade: cada um
dos abraços que se deram, contando cada
instante; o rosto lembrado no auge do
prazer, quando um súbito sol desponta
dos seus lábios; os cabelos presos nas
mãos, como se elas prendessem o feixe
da eternidade... Assim, a vida poderá
ter valido a pena. É o que fica: o que
nos foi dado e o que damos, sem que nada
nos obrigasse a dar ou a receber, o puro
gesto do acaso na mais absoluta das
obrigações.Então, volto a perguntar: que
outra coisa queremos da vida?
PEDRO, LEMBRANDO INÊS
Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
Dizer “ Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?” Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor,
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
ele que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.
Ecloga
Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes, tu a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e tise instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempoque o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.

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