quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

menina limão e dias que correm

Tenho uma tristeza redonda mas incontornável. Carrego-a. A maior parte do tempo carrega-me ela a mim. Tenho-lhe, por isso, a estima do bicho abraçado pela própria toca. Não devemos desprezar o que nos acolhe nos braços sem reservas. Eu não penso se gosto dela, não é equacionável. Vejo a forma como se mantém intacta pelas estações, como escarnece das árvores que se renovam. A minha tristeza não se atira ao chão como as folhas, não se despega da pele quando tomo banho – antes me turva a água como me turva os olhos. Soube-lhe o travo desde o início, veio traindo a saliva ao primeiro beijo. Às vezes a tristeza passa dos meus fluidos para os teus e fecunda-te. É mais perigosa que o teu esperma. Não te enganes com os meus beijos, repara antes nos meus olhos. Tenho uma tristeza fotogénica. Uma amiga viu-me o rosto impresso e disse é este o teu olhar triste. É uma tristeza invejável. Mais verdadeira que muitas entregas de corpos na imprecisão da madrugada.



A certa altura, a Susana encontrou o amor da vida dela. Foi a maior libertação que poderia alguma vez sentir. Agora, podia concentrar-se em encontrar a pessoa com quem passar o resto da vida. Porque são sempre pessoas diferentes. E nunca resulta pelas razões mais estúpidas. Porque é a velha história dos opostos. E o amor da vida é sempre demasiado oposto. Demasiado arrancado do coração.
A Susana, como todos nós, amou demasiado o amor da vida dela. Perdeu demasiado tempo a sonhar, a achar que ia durar para sempre. Perdeu demasiado tempo a dar demasiado de si. O amor da vida tem esta coisa dos demasiados que na altura parece sempre tão perfeito, mas apenas porque não vemos a condenação no fim da estrada. Parecendo que não, o simples facto de se achar que é para sempre estraga tudo, sempre. Porque o amor da vida surge sempre na altura que achamos que mais estávamos a precisar, quando ainda acreditamos incondicionalmente no amor e na paixão e nos sonhos a dois. O amor da vida ainda não tem a maturidade de nos deixar abandonados. O amor da vida é um embate a cem quilómetros por hora contra uma parede, com tudo de espectacular e doloroso que há nisso.
O amor da vida é explosões, prédios a cair, gritos, lágrimas, é música tresloucada em volumes impróprios. São corações a bater demasiado depressa, são demasiadas coisas, demasiado ao mesmo tempo. Tudo muito, em muito. E de repente, acaba. O amor da vida é sempre uma história mal acabada que nunca chega a acabar-se, apenas se esquece. E faz tremer se por acaso se reencontra.
O amor da vida é o das coisas grandes, das coisas pequenas que parecem grandes.
O amor de uma vida não. É tudo aos poucos, não fosse o medo de sermos abandonados de novo. O amor de uma vida não o procuramos, aparece quando não esperamos. É maduro e feito de silêncios sorridentes. É um dia de cada vez. O amor de uma vida surpreende-nos a meio da noite. O amor de uma vida sabe o que dizer, até porque quase sempre compreende realmente o que pensamos e dizemos e vivemos. O amor de uma vida completa-nos, conhece-nos, gosta dos nossos defeitos. Faz por nós aquilo que mais ninguém faria.
A Susana tem oitenta e três anos, ainda está à espera.
http://diasquecorrem.blogspot.com/

Um comentário:

Anônimo disse...
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