terça-feira, 29 de abril de 2008

de mia couto

Não existem fórmulas feitas para imaginar e escrever um conto. O meu segredo (e que vale só para mim) é deixar-me maravilhar por histórias que escuto, por personagens com quem cruzo e deixar-me invadir por pequenos detalhes da vida quotidiana. O segredo do escritor é anterior à escrita. Está na vida, está na forma como ele está disponível a deixar-se tomar pelos pequenos detalhes do quotidiano. O conto é feito com pinceladas. É um quadro sem moldura, o início inacabado de uma história que nunca termina. O conto não segue vidas inteiras. É uma iluminação súbita sobre essas vidas. Um instante, um relâmpago. O mais importante não é o que revela mas o sugere, fazendo nascer a curiosidade cúmplice de quem lê. No conto o que é importante não é tanto o enredo mas o surpreender em flagrante a alma humana. No conto (como em qualquer género literário) o mais importante não é o seu conteúdo literário mas a forma como ele nos comove e nos ensina a entender não através do raciocínio mas do sentimento (será que existem estas categorias, assim separadas ?).
Portanto, o único conselho é este: escutar. Tornarmo-nos atentos a vozes que fomos encorajados a deixar de ouvir. Tornemos essas vozes visíveis. E mantermos viva essa capacidade que já tivemos na nossa infância de nos deslumbrarmos. Por coisas simples, que se localizam na margem dos grandes feitos. Um contínuo da escola, um servente que presta apoio às aulas laboratoriais, pode ser mais sugestivo que o mais prestigiado académico. O que importa do ponto de vista do escritor é capacidade que essa personagem tem de suscitar histórias e de nos revelar facetas da nossa própria humanidade.
Regresso, por fim, ao universo da escrita literária. Só se escreve com intensidade se vivemos intensamente. Não se trata apenas de viver sentimentos mas de ser vivido por sentimentos. A escola muitas vezes nos “aconselha” a olhar o mundo através de uma só janela. E acreditarmos que só é verdade aquilo que for sujeito ao veredicto da ciência. Assim fechamos a nossa disponibilidade para outras verdades. Ficamos mais pobres, mais centrados no nosso isolamento.

Cada pedaço embriagado de felicidade faz com que queiramos ficar naquele lugar para sempre, onde não há problemas, onde não há distracções de quem somos, onde não há nada sem sermos nós próprios e o que queremos que nos rodeie.

Um comentário:

Anônimo disse...

" faz nascer a curiosidade cúmplice de quem lê, surpreender em flagrante a alma humana, não interessa o seu conteúdo literario mas a forma como nos comove" ...emociona :) exactamente o que me aconteceu com o David Crockett do Miguel S. Tavares! :) Ele chama-lhes "short stories"....

Obrigada pelos teus textos, short stories, contos...:)também me comovem. Beijinhos

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