quarta-feira, 2 de abril de 2008

para ti mana... que agitas mentes, porque brilhas, sempre...


Aquilo que me pediram para falar e que penso que seja do vosso interesse é sobre a profissão de Animador Sociocultural. Contudo, eu não sei falar sobre nenhuma profissão, nem sobre nada, sem fazer o respectivo enquadramento do tema no contexto em que ele se passa.
No caso do Animador Sociocultural senti necessidade, ao pensar o que é esta profissão hoje, de reflectir sobre por que é que se justifica que haja profissionais de animação sociocultural. É óbvio que fui obrigada a pensar em que sociedade estamos porque, se vamos formar profissionais ou pensar uma profissão para animar o social, temos que pensar que social é este.
Assim, elenquei algumas características sobre as quais não me vou deter muito porque são do conhecimento generalizado. Vou só lembrar algumas que me parecem, e que não são todas, da sociedade de hoje: aquelas que têm especificamente a ver, do meu ponto de vista, com a razão de ser de precisarmos de profissionais do social.
Para começar, lembrava que estamos numa sociedade, e muitas vezes esquecemos isto, que faz parte da chamada sociedade da abundância, no sentido de que vivemos numa sociedade onde, de uma forma geral, e para não esquecer que de facto há grupos de pessoas para quem isto não se passa assim, mas são claras minorias, os problemas da subsistência, de saúde estão resolvidos. Pensem, por exemplo, no que é a esperança de vida média nesta nossa sociedade de hoje comparada com as sociedades de há 100 anos, em sociedades onde, em termos de trabalho, o esforço físico é relativo, menor, por comparação com o que era o trabalho no passado. É, portanto, nesse sentido que falo nas sociedades da abundância. São sociedades que, e falando em termos gerais, se caracterizam por uma grande concentração urbana: um grande volume da população está concentrada em alguns pólos e não distribuída homogeneamente pelo território.
São sociedades de tempos livres, sociedades onde há muitos tempos livres. Desde que se levantam até que se deitam as pessoas não estão, duma forma geral, no trabalho. As pessoas têm horários de trabalho, tempos livres, tempos de lazer e fins-de-semana. É evidente que estou a falar em termos gerais, não estou a dizer que isto é assim para os 10 milhões de portugueses. Sei muito bem que muitas pessoas usam o tempo livre para continuarem a trabalhar, mas não é nesse sentido que estamos agora aqui a falar.
São também sociedades em que o trabalho é rotinizado e especializado, em que cada um de nós não faz tudo aquilo de que precisa para viver. Não fazemos as nossas roupas, não fazemos toda a nossa comida desde o princípio, não produzimos aquilo que vamos cozinhar, não produzimos os nossos sapatos. O trabalho está especializado e rotinizado. Cada um de nós faz, como trabalho, uma tarefa, sendo algumas mais ligadas ao trabalho doméstico e que, duma forma geral, são centradas nas mulheres.
São sociedades em que a família é nuclear, em que a vida está muito centrada num núcleo familiar constituído em torno de pais e filhos e onde se nota, ainda, muito a presença dos familiares colaterais. É uma sociedade centrada na família, mas muito menos do que centrada na aldeia ou na comunidade como foi noutras sociedades do passado, ou como é noutras sociedades diferentes da nossa. Quando falo da nossa, estou sobretudo a falar das sociedades da modernidade, das sociedades modernas, não só da portuguesa.
São sociedades que separam as pessoas por grupos etários onde temos categorias de pessoas - crianças, jovens, adultos e velhos. Há separação, há estatutos diferentes na vida em sociedade. Temos crianças que não trabalham e vão à escola x horas, jovens que não trabalham e que, em princípio, devem ir à escola durante x anos, adultos que, em princípio, devem trabalhar e velhos que até ver, para já, não devem trabalhar. A sociedade organiza-se assim.
Outra característica destas sociedades é a individualização. São sociedades de forte presença da individualização, mas mais a individualização do que o indivíduo em si mesmo. O que quero dizer com isto é que depois de uma época em que as garantias de inserção na sociedade, na forma de cada um de nós ser, eram muito balizadas pela religião, pelo estatuto, pelo nosso papel social, pela família, nas quais as pessoas, consoante a família a que pertenciam, iam continuar o seu legado. Ou seja, ao longo da vida, iam ter um tipo de inserção social, um determinado papel ao nível do trabalho, da vila, da aldeia ou da cidade. De certa forma havia uma reprodução ao longo das gerações dentro da família e era muito claro como é que era a forma de se ser, por exemplo, médico, professor, sapateiro - todos esses papéis, todas essas funções sociais eram muito claramente definidas. Hoje em dia há muito mais liberdade. Dentro da mobilidade social, um filho de um professor não vai necessariamente ser professor assim como o filho de um carpinteiro não vai necessariamente ser carpinteiro e por aí fora. A mobilidade social é mais possível e, portanto, mais individualizada. Cada um faz o seu próprio percurso. É cada um que decide se quer casar ou não, não é a família que decide por ele. Há aquilo de que se fala muito, as identidades estão em projecto e são uma construção muito mais que no passado. Hoje a identidade de cada um pode ser vista como um projecto, algo que a própria pessoa, fazendo escolhas aqui e ali, vai construindo; e há muitas possibilidades, muitas identidades em presença e obviamente também se pode considerar que há várias identidades na mesma pessoa. Hoje esta questão das identidades é muito importante.
Outra ideia importante para a profissão de animação do social é a ideia das sociedades domesticadas. Vivemos em sociedades domesticadas. O que quer isto dizer? Refere-se em grande parte àquilo que tem a ver com as questões da violência, de como esta se passa nas nossas sociedades. De certa forma é uma violência que é exclusiva do Estado. É o sistema de justiça organizado pela sociedade, pelo Estado.
Os nossos estados organizam sistemas de justiça, sistemas militares, organizam prisões, digamos que têm o monopólio da violência. No dia-a-dia, quando há violência, esta é considerada crime, delinquência, é considerada como algo de anormal. Há, portanto, formas de estar em sociedade: foram desenvolvidas normas, regras e mecanismos em que, no fundo, todos nós aprendemos desde muito pequeninos como é que se está, como é que nos relacionamos com os outros, qual é a distância de uns para os outros, o que é aceitável e o que não é, o que vai, de certa forma, estabelecer uma certa confiança na relação, pois cada um de nós, sabe o que esperar dos outros e, portanto, as coisas funcionam dessa maneira “domesticada”.
Por exemplo, nesta sociedade, eu sei que, estando aqui como oradora convidada, em princípio, falo e vocês ouvem até ao momento em que se abra o debate ou que alguém peça a palavra pondo o dedo no ar. Dificilmente, a não ser que se passasse algo de muito mau, e mesmo assim, dificilmente as pessoas se levantariam contra e criariam aqui um motim. Isto porque nós assimilamos formas de fazer. Um professor, quando está numa aula, está também à espera deste tipo de comportamento, embora hoje em dia isto comece muitas vezes a ser posto em causa dentro da sala de aula e os comportamentos dos estudantes não se regulem por este tipo de normas. Aí, dizemos que não sabemos em que mundo estamos. Perguntamos o que se passa, de onde vêm estas crianças. Faz-nos uma imensa confusão, porque, de facto, não percebemos, parece que não foram educados. Ser educado é isso, é interiorizar estas formas de estar, e é a isso que estou a fazer referência em termos de característica geral da sociedade.
Todos recebemos informação de todos os lados. Vivemos numa sociedade da informação. Todos vimos o enforcamento do Sadam Hussein no Iraque, que não é aqui ao lado. Vimos todos, mesmo aqueles que evitam ver telejornais, como eu, exactamente porque há determinadas imagens que não querem ver e por isso preferem ler jornais. Mas mesmo assim, vêem na televisão essas imagens duas ou três vezes. Somos abrangidos por isso, quer queiramos quer não. Há acesso a informação desse tipo como há acesso a outro tipo de informação. Ela faz parte da nossa vida a todos os níveis, em todos os momentos, que vai muito além do ponto onde estamos, do sítio onde vivemos.
Também vivemos numa sociedade de democracia, de democracia representativa. O significado disso é o de um poder longínquo, ou seja, delegamos noutros que decidam, que tomem decisões, que pensem, que discutam os assuntos e que façam as leis por nós. Seja isto ao nível do governo, ao nível autárquico, dos conselhos executivos das escolas, seja do que for. Nós delegamos noutros para que decidam por nós.
Isto é a base da democracia representativa, na sua característica principal, e é a que me interessa trazer para a animação sociocultural, não querendo dizer que seja esta a definição de democracia.
Há outra característica fundamental - duas em ligação uma com a outra - que é a do consumo e da publicidade. Vivemos numa sociedade dominada pelo consumo e que é dominada pela publicidade. A publicidade em ordem ao consumo.
Vivemos numa sociedade em que fundamentalmente consumimos serviços de vários tipos. Seja ao nível das necessidades básicas, de outro tipo de necessidades, daquilo que muitas vezes chamamos supérfluo, mas que não consideramos supérfluo, isto é, são necessidades que de certa forma são criadas pela própria sociedade, pela forma como ela funciona e alimentadas pelos mecanismos da publicidade. Temos, hoje em dia, na sociedade, uma atitude de consumidores e entramos muito bem nesse papel.
Consumimos a todos os níveis, seja alimentar, das roupas, de tudo aquilo que faz as nossas necessidades básicas. Como tudo o resto, também o lazer é baseado no consumo. Somos consumidores, não somos produtores, portanto, esta característica vai ser também muito importante para pensar a profissão de animador sociocultural.
Há um autor, Zygmunt Bauman, que no seu livro “Identidade” diz:” Nós temos a tentação de substituir o desejo, ou a necessidade de amar e ser amado – que é uma necessidade humana, amar e ser amado. Abro aqui um parêntesis para falar de uma coisa de que me esqueci quando abordei a questão da individualização, é que não estamos propriamente na época do indivíduo no sentido do indivíduo soberano. Hoje temos consciência disso - que se vive na relação com o outro e que aquilo que nós somos tem fundamentalmente a ver com a imagem que os outros têm de nós, com a imagem que queremos dar aos outros, com o feed-back disto. É fundamentalmente na relação. É nesse sentido que a questão do consumo e da sociedade em que vivemos tem que ver com esta frase de Bauman que agora retomo: “ Tentamos substituir o desejo e a necessidade de amar e de ser amado, por relações de consumo de satisfação imediata”. Nós temos uma multiplicidade de relações, hoje em dia, que são superficiais comparadas com antigamente em que as pessoas tinham algumas, poucas, relações profundas. As pessoas davam-se com poucas pessoas, viviam em meios relativamente pequenos, deslocavam-se relativamente pouco, claro que em comparação connosco na sociedade de hoje, em que existe uma multiplicidade de relações, de um modo geral, como se disse, superficiais, de certa forma não aprofundadas neste sentido do criar relações com outros significativos.
Continuando nesta sociedade, vou agora centrar-me naquilo que podemos considerar ou que podem constituir aspectos problemáticos desta sociedade. Por um lado, é a questão do risco. Há autores e teorias sobre o facto de, e é uma expressão hoje em dia aceite, vivermos na sociedade do risco. A própria sociedade, no seu funcionamento, o próprio desenvolvimento social cria riscos que são incontroláveis.
Pensem, por exemplo, na questão dos riscos alimentares, dos medicamentos, dos nucleares, nesse tipo de questões que se discutem. Há também a questão do princípio da precaução, do evitar, mas do precisar. Por outro lado, os técnicos dizem que não há riscos, que se consegue resolver, que se enterram, por exemplo, os resíduos de forma completamente segura, mas afinal, passadas umas décadas aquilo não era seguro e começou a verter…
A todos os níveis, e no dia-a-dia, também nós vivemos numa sociedade de risco, o caso da condução automóvel, para não dar um exemplo mais prosaico como uma pessoa ficar fechada num elevador. Vivemos numa sociedade que por um lado funciona com os peritos, com a técnica e por outro o seu funcionamento vai obviamente criar riscos que em grande medida são incontroláveis, ou se desconhece a capacidade de controlo. É mais ou menos isto que acontece.
Vivemos numa sociedade que também é problemática no domínio da concentração urbana, como já falei mais atrás, pois gera a segregação urbana. Dentro das grandes cidades, dos grandes meios cosmopolitas que juntam uma série de pessoas há uma forte segregação entre os privilegiados e os excluídos, os dos subúrbios. Pode ver-se, normalmente até em termos geográficos, a existência das zonas centrais e dos subúrbios, embora nestas questões da geografia urbana nem sempre é o centro e o que está à volta. Em termos de imagem, vejamos, por exemplo, nesta zona onde estamos, a Boavista, e as zonas dos arredores mais próximas da circunvalação onde a Câmara há umas décadas construiu bairros sociais, a forma como cada uma destas zonas vive em círculo fechado. Nem as pessoas que não vivem nos bairros sociais lá vão, e os bairros não têm vedação física, nada que impeça as pessoas de ir, mas as pessoas que não vivem lá não vão lá dentro, assim como quem vive nos bairros sociais, nas ilhas, nos subúrbios também, por norma, não vai às outras zonas da cidade. Aparentemente porque não têm lá que fazer, na realidade provavelmente porque se sentem lá tão mal como os dessa zona se sentem quando vão a um bairro social e se sentem rodeados por todos aqueles prédios, aquelas janelas, as pessoas a olhar. Deixa de se saber estar, as coisas deixam de funcionar com a normalidade que funcionam no mundo de cada um.
Depois, há também todas as questões que têm a ver com a exclusão de determinados grupos do poder económico, não estou a falar de poderio económico, mas sim do ter acesso a algum poder económico, seja por via do trabalho, seja pela via dos rendimentos mínimos de inserção, mecanismos estes que a sociedade aplica por reconhecer que além de determinado limite de ausência de meios económicos, as pessoas deixam de ter capacidade de mobilidade, de ter capacidade para se orientar neste tipo de sociedade. As pessoas que não têm um mínimo de dinheiro, por exemplo, deixam de poder sair da zona onde vivem, de poder procurar emprego, de entrar em contacto com outros. É pois difícil a todos os níveis tudo quanto é mobilidade no sentido de tornar possível a saída da situação de exclusão em que se encontram. Torna-se uma impossibilidade, até porque psicologicamente se cria um estado de resignação. Este problema da exclusão está muito ligado a esta questão da resignação das pessoas à sua situação.
Há também a exclusão de pessoas por categorias, que têm a ver com o envelhecimento da sociedade, a desertificação do interior e do isolamento. Há, portanto, categorias de pessoas mais excluídas, havendo também as minorias, sejam elas étnicas, ou de outros tipos. Sublinharia as étnicas e as minorias, não pela questão do número em si, mas sim pela questão do poder, da forma de inserção, da forma de vida na sociedade - as pessoas que têm determinado tipo de limitações, físicas, intelectuais ou outras. Por exemplo, nesta sala onde estamos, qualquer pessoa que viva em cadeira de rodas teria de subir ao colo. Este problema não é apenas desta sala, deve ser quase da totalidade do território português.
Face a este contexto, face a este tipo de sociedade, qual é a minha perspectiva sobre a profissão de animador sociocultural? Existe para quê? Para fazer o quê? Que tipo de formação queremos dar a essas pessoas?
A primeira coisa que quero dizer é que acho que só se aprende fazendo e só se aprende vivendo e, portanto, para uma profissão que quer preparar as pessoas para animar grupos ou indivíduos, enfim, para animar outros, considero que a formação que temos que lhes dar e a forma de a organizar, tem de ser uma formação em que os animemos a eles próprios. Não pode ser a meu ver, nunca, porque não tem nenhuma possibilidade de êxito uma formação para uma profissão do tipo animador sociocultural, em que uma pessoa ou várias pessoas ensinam e outros aprendem.
Com isto não quero dizer que não haja momentos em que isso não aconteça, como neste momento, em que uma pessoa fala e a outras ouvem. Isso é uma coisa, todos nós podemos ter, e os professores têm obrigação de ter conhecimento que podem sintetizar e que podem organizar para ajudar os outros (alunos) a pensar e a organizar as suas próprias ideias. O que não pode acontecer é ficar-se por aí, tem que ter ao nível do debate e do diálogo características muito próprias no sentido daquilo que é a animação, no sentido de ser animado, de ser criativo, de estimular a curiosidade, o espírito crítico, a reflexão, e depois também treinar as formas de fazer.
As escolas que oferecem estes cursos devem ser escolas que aguentem com a perturbação que necessariamente o ter um curso de animação sociocultural deve representar na escola. Quando digo perturbação não são problemas, o que não quer dizer que eles também não existam, porque nós depois criamos problemas. Não é fácil a uma escola e tanto quanto maior ela for, provavelmente, ter que “aguentar” com uma turma que por exemplo, está com alguma regularidade a pedir para ir para lá trabalhar ao Sábado ou ao Domingo, ou que pede para fazer uma reunião com pessoas da comunidade num dia à noite ou que quer enfeitar o átrio da entrada, que quer fazer provocações nas outras turmas sobre debates ou outras coisas. Na minha óptica, acho que as turmas dos cursos de animadores socioculturais têm que fazer isto. Têm que experimentar na comunidade em que vivem e que é a comunidade em que se insere a escola. Mas antes disso, os alunos vivem numa comunidade que é a escola e portanto, a minha perspectiva sobre a formação sociocultural incide de facto na animação. Animação desta sociedade conformista, no sentido de que há pouco falei em sociedade domesticada, ou seja, todos somos tranquilos e calmos e estamos bem e aparentemente não há problemas nenhuns, quando muitas vezes há sobre muitas questões coisas não ditas e que mais tarde vão criar conflitos. Coisas em que as pessoas não estão de acordo, situações que as pessoas se habituaram a viver rotineiramente, mas sobre as quais não pensam e parece que não têm opinião até ao dia em que depois há um problema na escola, como por exemplo aquela situação da homossexualidade entre duas alunas numa escola em Gaia, o ano passado. E é assim que de repente vêm as ideias todas de chofre, embaralhadas, em confusão e em batalha, porque são assuntos que estão na sociedade de hoje, temas da sociedade que vemos na televisão, que eventualmente lemos nos jornais, que ouvimos falar em campanhas políticas mas sobre as quais nós não debatemos, não falamos, não dialogamos, a não ser eventualmente com os nossos amigos, três ou quatro, ou com a família, com pessoas com quem à partida estamos de acordo. Normalmente é isto.
Criar oportunidades de diálogo e de debate sobre os temas que atravessam a sociedade e que são significativos para as pessoas proporcionar essas oportunidades de discussão contribuindo para que progressivamente as pessoas ganhem uma consciência mais crítica, sejam mais reflexivas relativamente a essas questões. É isto que a meu ver está na base do que é a profissão de animador sociocultural, é fazer com que as pessoas sejam menos passivas, menos consumidores, que é talvez a característica mais marcante de cada um nesta sociedade. O que se espera de um animador é que nos torne menos passivos, que nos tire da atitude de consumo do que nos dão e que nos transforme em pessoas com atitudes criativas, críticas, de querer experimentar, realizar experiências novas. Era neste sentido que eu dizia, há pouco, que venham criar perturbação. Não é que nos venham entreter, que nos venham dar mais do mesmo, que nos venham dar mais espectáculos para consumir.
Não é isso que é necessário. Nem o animador sociocultural existe para isso. Pode sim fazer recurso às linguagens artísticas, pode trazer concertos de música, pode estar na base da organização de muitos espectáculos, mas estes são um meio para, não são em si a função do animador.
É importante ter em conta esta ideia primeira que é o profissional de animação sociocultural e a sua própria formação duas coisas que estão intimamente ligadas.
O animador sociocultural deve ser um agente, um actor da animação na sociedade, no sentido que já se disse, não alguém que nos dá mais actividades para nós consumirmos, para nos distrairmos, mas sim alguém que se implica na construção de algo e que nos vai também implicar na construção de algo. Seja essa construção, por exemplo, um debate, um diálogo, como o que vamos hoje aqui a fazer, e que pode ser muito interessante, contribuindo muito para cada um de nós, mas o mais importante, se isso for assim, é que depois muitos de nós fossemos nas nossas escolas provocar debates que continuem este, ou realizar workshops ou outra coisa qualquer consoante as linguagens que cada um domine melhor, para melhor ser capaz de transmitir, expressar para os outros aquilo que aprendemos, e que vamos transmitir que apreendemos, que experimentamos.
É nesta dialéctica entre o diálogo por palavras e o diálogo das palavras com as outras actividades e, aí sim, as linguagens criativas, a música, o cinema, a fotografia, o teatro e por aí fora, são fundamentais. Contudo, atenção, os animadores não são actores de teatro, não são artistas, embora possam sê-lo individualmente se quiserem, mas não é essa a característica da sua profissão. Esta profissão vai é ter que ter um conhecimento, uma atenção, uma informação sobre o que essas linguagens são, o que representam, sobre as potencialidades que elas têm para jogar com elas e com propostas sobre elas em contacto com outros grupos, com outras experiências para poder então animar o colectivo em que se insere.
Vou agora centrar-me nalguns tópicos para ficar tudo mais organizado.
1. Reconstrução do sentido de comunidade
Este aspecto é muito importante em termos sociológicos, em termos de ciência social. Discute-se, hoje, muito esta reconstrução do sentido de comunidade. Se pensarmos no que falámos há pouco sobre o tipo de sociedade em que vivemos, podemos perceber bem o que isto é, ao nível da
questão das relações, mas também ao que já disse sobre a democracia representativa, portanto, do sentirmos o poder como longínquo. Uma característica que é específica da sociedade portuguesa é aquilo a que se chama a falta de consciência cívica, de envolvimento em movimentos cívicos e isso faz parte, está ligado; isso integra esta noção de reconstruir o sentido de comunidade. É, portanto, as pessoas debaterem, as pessoas pensarem, reflectirem sobre aquilo que tem lugar nas suas vidas, sobre aquilo que se passa no seu quotidiano, sejam questões que se passam no seu local de vida, de trabalho, nas suas famílias seja das coisas que a televisão apresenta. Mas, portanto, irem além daquilo que é aquela atitude de apenas passivamente escutar ou ouvir e pensar, passando para uma atitude de procurar mais informação, e isso pode ser feito de muitas formas, pode ser procurá-la onde ela está escrita, por outros meios, das tais linguagens, de que falei atrás, pode ser ir procurá-la num debate com outras pessoas, organizando associações para tratar de determinado assunto, seja por exemplo, o que se está a passar agora com a reestruturação das carreiras da STCP, que tem gerado movimentos mais ou menos organizados que surgem em determinados momentos e acho que uma escola de animadores socioculturais que esteja a funcionar aqui no Porto deveria vir para a rua com os seus alunos perceber o que é que se passa nesses movimentos. Como falam as pessoas sobre isso, que ideias têm, que informação, se estão organizadas se não, como pensam resolver, perceber como funcionam os grupos se mais ou menos espontaneamente se há outros por trás que os estão a ajudar a criar aquela capacidade de mobilização, se aquele movimento vai continuar, como é que é a resposta do poder e por aí fora. Este tipo de acção na rua pode ajudar os alunos a treinar a capacidade, que é importante, de ajudar as pessoas a desenvolverem a capacidade de, de certa forma, assumir poder na sua vida quotidiana. Poder ao nível do poder fazer escolhas, de participar nas decisões, controlar aquilo que se passa na nossa cidade, no nosso local de trabalho, caminharmos portanto, no sentido duma democracia maior, em que somos parte dela e não estamos à espera que sejam os outros que sejam democratas, e façam tudo a contar com a forma como cada um quer que seja feito, ainda que individualmente ninguém exprima como é que quer que seja feito. Digamos, é ultrapassar, quebrar esta característica da passividade que depois espera sempre que sejam os outros a resolver os problemas.
É a este nível que falo do sentido da reconstrução da comunidade, do aumento da democracia, de experienciar a democracia, ao nível dessa formação da consciência.
Depois, há aspectos de que alguns autores também falam, das emergências emancipatórias, aspectos da sociedade que de certa forma estão a emergir e vão emergindo e a nossa sociedade está em mudança permanente e acelerada e há vários aspectos que estão sempre a emergir. Por exemplo, a questão das discussões da homossexualidade já passou para a discussão sobre o casamento entre homossexuais, as discussões sobre multiculturalidade neste momento em Portugal coloca-se muito ao nível de outros cidadãos de outros países que vêm para cá e que estão a fazer aumentar imenso a imigração. Mas também há emigração de portugueses para o estrangeiro. Há muitos temas. Há associações de emigrantes que se´estão a criar, há movimentos ao nível da saúde, por causa das maternidades que estão a fechar, dos hospitais, das urgências. Tudo isto são aspectos que vão emergindo e que estão sempre a emergir na nossa sociedade em relação aos quais podemos considerar que podem funcionar como emancipatórios no sentido da emancipação da tal consciência, dessa forma de estar passiva, e portanto, das pessoas estarem progressivamente em relação a vários aspectos a procurar tomar poder, procurar controlar o tal poder que existe das pessoas que têm o dever, a obrigação, por exemplo, o Ministério da Saúde de organizar o sistema de saúde. Nós exigimos isso: que organizem e que pensem bem; mas isso não quer dizer que lhes entreguemos a bola para a mão e que façam tudo sozinhos e o que fizerem está bem feito. Não, isto quer dizer que nós também queremos que o Ministério da Saúde organize articulações com a população, com os movimentos de cidadãos, com as autarquias, com os representantes dos sindicatos, seja a que níveis for, que as pessoas se organizem para terem um papel activo, para terem voz, para terem posição. Há outros países que têm fóruns a nível da saúde com cidadão que se oferecem para os constituir debatendo assuntos desta área, havendo legislação que lhes dá determinado tipo de poderes de acesso a documentos, de fazer relatórios que têm obrigatoriamente de ser lidos, comentados e respondidos.
2. Este tipo de trabalho faz-se numa pedagogia com os outros e não para os outros. A grande questão é o diálogo com os outros. Não é serem pessoas que sabem o que dizem e trabalham para os outros. Isto aplica-se ao nível da formação dos animadores socioculturais, mas fundamentalmente como treino daquilo que depois têm de fazer. Eles não vão para uma colectividade, uma autarquia, uma escola, seja para onde for, não vão para lá trabalhar apara as pessoas; não vão para fazer um programa cultural, não vão para uma colectividade para organizar um programa de actividades muito bonito. Vão para lá para conseguir trabalhar com as pessoas, para conseguir conquistar pessoas da comunidade para trabalhar com elas, vão no sentido de tentar animar para que surjam grupos na comunidade, eventualmente um grupo
que faça um jorna, um grupo que faça uma reunião de mães com crianças recém nascidas ou de pais ou um workshop sobre determinado tema, etc.. Ou seja: os animadores socioculturais vão animar para que sujam actividades, apoiando-as e alimentando-as a vários níveis com os diferentes grupos que surjam.
Só para situar duas ou três ideias que já disse e uma ou outra que não foi dita.
Fundamentalmente a ideia de que um animador sociocultural não é um técnico de uma actividade artística e muitas vezes há essa confusão. A ideia não é que os animadores façam actividades para os outros, mas sim que façam uma animação no sentido de transformarem as pessoas com quem trabalham em actores daquilo que podem, que querem experimentar e provocar esse tipo de atitude que dá azo à criatividade, que é fazer com que as pessoas saiam duma posição passiva para uma posição crítica em relação ao mundo, de experimentar projectos, de experimentar relações novas, de experimentar trabalhar de uma certa forma as coisas com que vivemos no quotidiano. Muito centrado na relação entre as pessoas, na discussão, no debate e nos grupos.
A outra ideia é que a formação para os animadores socioculturais, e isto parece-me fundamental, tem que ser uma formação em que já se construam pessoas nessa atitude; não pessoas que são formadas numa atitude passiva que depois se tornam capazes de dinamizar os outros para uma atitude activa, mais criativa e mais crítica. Os próprios estudantes devem ser “trabalhados” no sentido deles próprios experimentarem, na sua pele, no seu corpo, na sua forma de estar coisas tão simples como ser capaz de falar em público, ser capaz de intervir em diversas situações, não adoptando atitudes passivas por acanhamento.
É neste sentido que vejo como muito importante nestes cursos a área das expressões corporal, dramática, musical, não para criar músicas, artistas de teatro ou pessoas capazes de fazerem dramatizações, mas sim para criarem a oportunidade das pessoas conhecerem melhor o seu corpo, tanto as suas limitações como as suas possibilidades e saberem usá-lo de uma forma expressiva. Através do nosso corpo, transmitimos entusiasmo, dor, sofrimento ou vontade de fazer coisas, alegria e isso tudo é que as áreas das expressões num curso destes devem treinar e devem ajudar as pessoas, por um lado a confrontar-se e a perceber isso em si próprias, por outro lado e ser capaz de utilizar e de saber depois recorrer a isso no trabalho com as outras pessoas.
Augusto Boal “Teatro do Oprimido” têm muitos jogos, muita informação que nos ajudam a fazer experiências da relação de uns com os outros e da relação connosco próprios e que aumentam muito a possibilidade de utilizar o corpo como potencialidade expressiva. Outra área que acho também muito importante na formação é tudo que tem que ver com o conhecimento de experiências de outros e hoje seja através da Internet seja criando parcerias com outras escolas, com associações… vivenciando estas experiências de trocas e de partilhas enquanto estudantes para que depois enquanto que profissionais de animação sociocultural as possam promover com os outros com quem trabalham.

Sessão Temática 6
“Animação Sociocultural”
Maria Luísa Ferreira da Silva
Professora Auxiliar com Agregação da Universidade Aberta
Transcrição da comunicação

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