quinta-feira, 26 de março de 2009

assoma pela esquina
a caminho, uma pitada de humor abaixo da fasquia constante
vem em nuances
suaves e desce de mansinho

túnel escorregadio

dá um “passou bem” ao instalado bem-estar
faz-lhe um pirete
vira as costas onde vem escrito
“interrupção para intervalo”
comum mortal és

Melancolia és sempre bem-vinda

terça-feira, 24 de março de 2009

sexta-feira, 20 de março de 2009

sexta-feira, 6 de março de 2009

A noite deixou-me outra vez transtornada
lentamente a manhã se enche
de palavras que eu sei de certeza
que signifcavam alguma coisa, mas o quê?
que ontem signifcavam alguma coisa.
Andar é balançar sobre os pés,
vejo na rua os seres de sangue quente
que tiveram também a inexplicável coragem
de se levantarem
em vez de fcarem deitados.
Nunca ninguém tem a certeza de nada,
de ser amado, de ser abandonado
tudo é possível e tudo é permitido
tudo sucede em alternância.
Agora me lembro o que queria dizer:
enquanto isso não trouxer infelicidade
é uma sensação agradável. Mas no fundo
somos doces como Turkish Delight
numa lata cheia de pregos.
Judith Herzberg

quarta-feira, 4 de março de 2009


[a]em cima do corpo há uma jarra. dentro da jarra há
veneno. ao lado do veneno há por dentro uma lua. por baixo
da lua há um fundo de verdade.
[e]debaixo de um poema neo-realista há um eu atado em
nós. por cima de um poema romântico há uma foda
monumental do eu consigo. antes de um poema moderno há
a masturbação da flor. por baixo de tudo isto há a mãe o pai
o vomitado leite da velhice e muitas quecas e queques em
pastelarias oníricas.
[i]no cimo da escada há o outro. a meio da escada há um
porto. à frente da escada há o medo. no fundo da escada há
fantasmas na roupa. por dentro da escada há coisas a subir,
coisas a entrar, másculos a sair.
[o]dentro de uma caneta há a alma da caneta. por cima da
caneta há um assassino de si. por baixo da caneta há merda
transfigurada.
[u]dentro deste texto há onde eu. ao lado deste eu há
por onde eu. em cima deste texto há quem se esconde eu.
depois deste texto há eu sentado na retrete a corrigir as
provas e a achar que ainda não me exponho demasiado, e
que em vez de aprender a ler eu deveria saber escrever eu.
[ou]não éramos todos mais felizes se vendesse eu partes do
meu corpo dentro do livro? em vez do livro que tem por
baixo o corpo? ou melhor: se eu vendesse o meu corpo para
ser comprado, metido na prateleira, e fazendo amor com os
outros livros fizesse, para o fim da história, alguma coisa de
verdadeiramente legível?
[ai]anda comigo para dentro do texto porque eles afinal
querem ler-me contigo por baixo do texto. brinca aos
sentidos comigo ao perto do texto porque afinal eles querem
ver-me contigo dentro do texto. finge comigo por cima do
texto porque eu vivo de ti ao longo do texto.
[ui]em cima do corpo há um corpo invisível. ao lado do
corpo há um corpo visível. por dentro do corpo há dois
corpos legíveis. a literatura é guiada por um morto.
[ei]
ditongo usado ao longo por dom dinis. quase nasal
dentro de camilo. interjeição ao fim de rima de pé quebrado
monárquica. perda da distinção fonológico-filosófica entre
esta e [eu] - nudista correndo através do texto.
[au]por dentro de um homem há um feminista. em cima de
um homem há uma lista telefónica. ao lado de um homem há
o que não há.
[eu]crítico literário, poeta a ver, ex-seminarista feliz,
prosador imperceptível, míope constante. usa a caneta a
meio do corpo ultra-lírico descontrucionista,
contorcionista sintático, doente corporal. julga-se bom, cita
velhinhas sem idade, esvazia a morte e tem medo de si como
palavra. se o encontrarem à noite, anda a escrever o labirinto
no corpo para ver se se conhece eu.
Pedro Sena-Linoas flores do sono - prelúdios e fugas
Litera Pura

terça-feira, 3 de março de 2009


"40.02"
"Aqueles com memória mais curta serão tentados a ouvir em peixe : avião ecos de Radiohead e eles estão lá, efectivamente, mas enquanto herança de uma linhagem muito mais antiga, com genealogia nos pergaminhos de Canterbury e no rock progressivo dos primeiros Pink Floyd de Syd Barrett e dos Van Der Graaf Generator de Peter Hammill, passando pelo krautrock dos Faust ou dos Neu!. Mas se a estirpe é identificável, o que faz a singularidade de peixe : avião é a portugalidade que irradia, como se de repente tudo o que nos habituamos a associar à alma portuguesa, a melancolia dos seus poetas, o singelo das pequenas coisas, se cristalizasse em sons e palavras. Esqueçam o fado como Amália o popularizou e é macaqueado de Portugal ao Japão: o novo fado do século XXI é peixe : avião!Nada disto faz sentido, decerto, numa lógica estritamente científica ou numa abordagem puramente musicológica e, no entanto… faz todo o sentido!!! peixe : avião é um milagre! É um milagre na sua génese, na maneira como cinco desconhecidos, que mal se conhecem ou desconhecem de todo, vindos de diferentes áreas e diferentes bandas, de imediato se completam e dão corpo, numa espécie de geração espontânea, a uma obra única, de marcada identidade e sensibilidade; e é um milagre a música em si, o modo como a tristeza, o tédio, o abatimento, a espera, o cândido são adornados com a banda sonora perfeita e absoluta e cantados pela notável e estranha poesia de Ronaldo Fonseca, numa união imaculada e magnífica. Como se peixe : avião sempre tivesse existido algures no limbo da nossa inconsciência, na maresia das tardes de Verão, na aragem trazida pelas primeiras chuvas, e esperasse a junção dos vocábulos para tomar forma. Nesse sentido, nunca um nome espelhou tão perfeitamente o objecto que designa. Porque nunca a dissemelhança foi tão harmoniosamente enlaçada na criação do novo como acontece com peixe : avião.Há muito – demasiado – tempo que não somos surpreendidos por uma obra musical. Nada de espantar, porquanto os milagres e o sublime só acontecem muito raramente… Mas quando temos o privilégio de viver um momento desses, como é o caso com a audição de “40 . 02” de peixe : avião, só podemos regozijar-nos e espalhar a boa nova pelos quatro cantos da terra. É o que eu faço e o convido a fazer: entre no mundo maravilhoso de peixe : avião, deixe-se mergulhar nas correntes aéreas deste oceano desconhecido, desfrute da viagem pelas profundezas da brisa outonal e vai ver que também vai sentir esta alegria, esta fé resplandecente na capacidade humana para produzir o belo que só as grandes obras conseguem gerar."
por Adolfo Luxúria Canibal

acordo. é de manhã no texto. a raiz do verbo bate-me
sofregamente no coração uma espécie anímica de calor. nos
gestos lançados sobre o mar vazio dos objectos, do Objecto,
eu serei sempre aquele que deixava um gosto indiviso de
murmúrio. é ao peso do fim que me levanto e à minha
passagem assisto em carne ao suicídio das coisas. cada ser me
repete fim breve, arco partido.
acordo e recito o texto do fim que eu próprio sou
escrevo o lugar que visto por dentro.

Pedro Sena-Lino

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