segunda-feira, 26 de janeiro de 2009


De Almada Negreiros, "A Flor":
Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção , outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais. Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!Moral da estória: A flor desenha-se diferente no íntimo de cada um de nós, mais bela, mais frágil, mais graciosa, mais perfumada...
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Woody Allen (?)
A minha próxima vida, tenciono vivê-la de trás para a frente. Começar morto para resolver rápidamente esse assunto. Depois acordar num lar para idosos e ir rejuvenescendo na medida dos dias que passam. Ser convidado a saír, por ser demasiado saudável para o frequentar. Transitar, alegremente, dos proventos da aposentadoria para o mercado de trabalho, recebendo, meritoriamente, um magnífico relógio de ouro no primeiro dia. Trabalhar 40 anos, cada vez mais desenvolto e saudável até ao estádio universitário. Embebedar-me diariamente, ser bastante promíscuo, e caminhar até ao secundário, primário, todos estes percursos sem pressas, e por aí, até ser criança e brincar, só brincar, sem pensar na chatice da responsabilidade. Então, eis-me chegado quase ao dia do nascimento. Sou um bebé inocente, lindo e doce até ao primeiro vagido.Finalmente passo, mais ou menos, 9 meses a flutuar na piscina aquecida de um "spa" de luxo, todos os serviços incluidos e a possibilidade de aumentar o espaço residencial a meu belo prazer. Tudo isto sem pagar um tostão! Depois - Voilà! - desapareço num orgasmo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009


Há pessoas que põem palavras nos nossos sentimentos. Parecem-se com os poetas. Mas depois, de surpresa, abandonam os nossos sonhos pé ante pé ou de pantufas. Não sei... Na verdade, decepcionam-nos (devagarinho) e, quando damos por isso, apagam-se dentro de nós. Deixam de ser preciosas e, por tudo o que valeram, não podem voltar a ser só (!) nossas amigas. Partem, portanto, para uma terra de ninguém, muito distante do sítio onde vivem os génios da lâmpada, o Pai Natal, as fadas e os duendes. E por lá ficam. Mais ou menos errantes.Imagino esse lugar, onde se acotovelam tantas pessoas que nos disseram tanto, como um Purgatório, com a particularidade de lá não se ser promovido, com facilidade, até ao Céu. É verdade que essas pessoas não se transformam num inferno dentro de nós, embora, por vezes, surjam, ora como um vulto ora como uma silhueta ou, até mesmo, como uma estrela cadente que, atravessando o nosso coração, já não provoca um arrepio (muito menos, um calafrio, que são aqueles sentimentos impetuosos que nos desabotoam a cabeça e nos deixam a arder de paixão e a tremer de medo, ao mesmo tempo).Afinal, não são nem amigos nem amores. Transformam-se num museu? Numa arqueologia de todos os amores, por exemplo? Às vezes, nem nisso. Infelizmente. Se fosse assim, estáticas ou em pequenos pedaços de histórias, empoeirados, seguravam-se no nosso coração. O que não acontece às pessoas que foram perdendo a magia...Este não sei para onde (eu sei que, dito assim, custa só de pensar) é uma espécie de cemitério de poetas dentro de nós. Um lugar de silêncio que convida a espreitar para o que sentimos. Com surpresa e com dor, ao descobrirmos que, ao contrário do que sempre desejámos, há relações — luminosas — que foram morrendo para nós. Às vezes, assusta. Afinal, não é simpático descobrirmos que mora em nós alguém que, não sendo o Capitão Gancho, tenha ajudado a morrer (de inanição, por exemplo) quem trouxe poesia, ou luz, ou um insustentável rebuliço ao que sentimos... Às vezes, atormenta. Porque magoa descobrirmos que — mesmo quando nos imaginamos a dar a sala mais espaçosa do nosso coração — também nós, dentro de algumas, vivemos sem viver, errantes, nesse não sei onde de alguém, entre os seus amigos e os seus amores. Às vezes ainda, somos tocados pelos galanteios da vida e, levados pelo entusiasmo, imaginamos que, se desejarmos com muita força, algumas das pessoas que guardamos no nosso cemitério de poetas ressuscitam e regressam, cheias de luz, para surpresa do Pai Natal ou das fadas (que, sendo mágicos, parecem viver num mundo de bolas coloridas de sabão). Eu sei que também entre as pessoas há quem pareça mágico mas intocável. Como eles. Mas não se esqueça: esse é o cais de embarque que, de surpresa, nos pode levar (sem volta) para o cemitério dos poetas.
Eduardo Sá

A memória é um instrumento que mistura as funções de um relógio, de uma balança e de uma régua, acrescentando alegria ou tristeza ao resultado. O cérebro é um órgão científico que chora.

Gonçalo M Tavares

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

e porque vivo o amor




Minha laranja amarga e doce

meu poema

feito de gomos de saudade

minha pena

pesada e leve

secreta e pura

minha passagem para o breve

instante da loucura.


Minha ousadia

meu galope

minha rédea

meu potro doido

minha chama

minha réstia de luz intensa

de voz aberta

minha denúncia do que pensa

do que sente a gente certa.

Em ti respiro

em ti eu provo

por ti consigo

esta força que de novo

em ti persigo

em ti percorro

cavalo à solta

pela margem do teu corpo.

Minha alegria

minha amargura

minha coragem de correr contra a ternura.




José Carlos Ary dos Santos

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