terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

"Carta para Leonor no dia em que faz 22 anos"

“Só tem valor o que não se pode comprar. Podem-se comprar pêssegos mas não podemos comprar o pessegueiro em flor no campo em que floresce. Isto não tem a ver com o dinheiro. Pode-se dar dinheiro por coisas que não têm valor. Uma fotografia, por exemplo, tem um custo, mas o seu valor está aonde ela não está, de mistura com o sono que nos agarra quando a vemos. É assim também o amor. É sempre preciso voltar à banalidade das coisas. O espírito é só o contraste que revela. Somos sempre pesados como água e leves como o vento. Não paramos de passar. E o mistério das coisas não está nelas, nem em nós. O mistério existe e é tudo. E se quisermos saber tudo ficamos logo cegos. A bondade é o que há de mais belo, Leonor, e não se sabe o que é. É urgente que aprendas a viajar. E não voltamos nunca. E vamos acabar. O que nos espera não espera por nós. Ficaremos cansados de qualquer maneira, e não há nada a fazer e isso já o sabíamos no começo e no fim não nos podemos queixar. E no entanto vale a pena este lugar, este tempo, esta vida é um erro. Vale a pena esperar, não esquecer nunca o que nunca está presente. Vamos indo, aos poucos, a um encontro secreto. Leonor, não tenhas medo. A maldade turva o olhar, não o dos outros, mas o nosso. Não é preciso ter em conta as consequências, é no próprio fazer que a culpa se mede. Olha para os teus próprios olhos antes de olhares para os outros. O que os teus olhos vêem vem da luz que tens em ti. Foge do escuro, foge. Foge sobretudo das sombras do teu olhar. O mais precioso, por mais ténue, vale mais do que tudo o resto, mesmo sem existir. Todo o tempo é precioso. Dorme menos. Não vale a pena dormir com um homem com quem se dorme. O prazer vem só com o que acompanha da melhor maneira. De resto está só em passar e não há caixa em que se guarde que depois se possa oferecer. Só o longo trabalho salva. E o amor precisa de mais cuidados do que um jardim. Todos os dias é preciso regar o nosso amor. E podar os ramos mortos. Trabalharemos pois, Leonor, que o amor requer trabalho e o trabalho precisa de amor. Nunca saberemos o que nos une. Nem o que nos separa. Foi sempre assim. É essa a pequena grandeza que nos distingue. Só nisso somos todos iguais. O homem do lixo vale mais do que eu. A ideia que temos mais do que somos ou seremos é uma luz incerta e vaga. O mais das vezes enganamo-nos. Mais ainda quando julgamos acertar, finalmente. Temos sempre de recomeçar e é nisso que somos eternos. Louvemos pois o que nos separa e o que nos une, isso mesmo é que é preciso não degradar. E quando o corpo cansa e a alma entristece não faças caso. De vez em quando o mundo também precisa de descansar. Admira as árvores e as nuvens e a sua indiferença por ti. Não queiras ser o centro de nada. À tua volta descobre o que não és. A frivolidade gasta a alma numa inútil correria. Sê humilde e sensata. Se for preciso torna-te pesada como uma pedra que, embora pisada, não se levanta contra ninguém. E se for preciso sê como o chicote que corta, doce e alegre... Leonor.”

Cit in “Viver todos os dias cansa”, Pedro Paixão

17 Agosto 2005

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