terça-feira, 2 de outubro de 2007

Carta (Esboço)

Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto,sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até,um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que,afinal, não conseguimos dizer.É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem á comunicação
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida,e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atras de si o próprio
ser,como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo.Então, é natural que voltes atras e
me peças:"Vem comigo!", e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia,que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caiem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas.No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e,por
trás disso, de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu,do mar,da terra,e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul,de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
NUNO JÚDICE

2 comentários:

Joaquim Maria Castanho disse...

Nascimento de Vénus


O silêncio desperta, a noite calada avança...
No fundo, no íntimo de cada um
A força irrefutável de estar presente: só

Apenas gesto, silhueta que se apaga ao cair
Morrão de cinza entre dedos que se esquecem,
Olhar perdido entre as nuvens e a planície
Andorinha em voo que cruza a moldura da janela
«Vhuuummm!!...» de carro que passa na estrada
A esconder-se no silêncio que fica depois.

O catarro do vizinho no subir das escadas
Recorda que as convulsões do corpo de vãs
Somente têm a indiferença que lhe votamos;
Resfolegante o prédio como um paquiderme
Cansado exala os odores do jantar prestes.

O indicativo do telejornal apaga a ausência
A campainha do terceiro andar besoura e retine
Uma formiga de asa deambula no peitoril da janela.
Batem os saltos de alguém que passeia o cão
Sem pressa num compasso de espera incerta.

Mas do alto desta quietude de borracha fria
Que raspa e desvanece as impressões do dia,
Silenciado nos ecos da memória de ninguém,
Do escurecer nasce a estrela que antes não via
Lembrado-me que quem se não dá, nunca se tem!

Joaquim Maria Castanho disse...

Soneto da fidelidade

Em tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou a seu contentamento.

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Moraes

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