Crítica Ípsilon por:
Vasco Câmara
"Quatro Noites com Anna" é o filme de um cineasta intacto - na sua disponibilidade para o desejo e para a obsessão. Há filmes, há livros que nos atiram para a infância. Não porque falem dela, da infância, mas porque nos mantêm, espectadores ou leitores, amarrados ao assombro e ao terror de descobrir mundo. Sobre aquilo que nos invadiu durante "Quatro Noites com Anna", de Jerzy Skolimowski - "A Sombra do Caçador", de Charles Laughton, Dostoievski, "Psico", "Peeping Tom"... - não queremos retirar programa, não temos a certeza de arranjar argumentos para tais genealogias. Mas aquilo que irrompeu em "flashes" é um irracional familiar, um sabor que se explica só quando se prova.
Isto para dizer que "Quatro Noites com Anna" é um filme que nos põe nesse lugar - no devido lugar. Talvez porque o cineasta polaco Jerzy Skolimowski voltou a descobrir mundo, depois de estar 17 anos sem filmar, esgrimindo a sua obsessiva inocência, fazendo corpo com a personagem de Léon Okrasa, funcionário de um crematório que está fixado na enfermeira que vive em frente e que um dia franqueia o interdito e entra no quarto dela - passa quatro noites com Anna, na casa desta pouco bela adormecida, e assim passamos quatro noites com esse sonhador, Léon Okrassa. Tudo se passa na Polónia onde apodrecem restos de "kholkozes" (e à Polónia Skolimowski regressou, indo directamente de Hollywood). Mas a neve, na verdade, é paisagem universal da fábula.
O corpo de Léon, então, homem ridículo (e algo trágico): Skolimowski, tal como fez em relação a outros obcecados de outros filmes seus, calça esses sapatos de obsessão, surrealismo e burlesco que calcorreiam bosques, escorregam no gelo. Não estamos a inventar nada quando vemos em Léon, que às tantas usa binóculos para conseguir "agarrar" o objecto do seu desejo, o próprio Skolimowski, a câmara de filmar e os filmes. Quando dizemos que o realizador calça os sapatos da personagem (há algo em relação ao andar de Léon, não é obsessão nossa...), queremos dizer que ele parece experimentar o desejo como se fosse a primeira vez. "As Quatro Noites com Anna" é o filme de um cineasta intacto - na total disponibilidade para a obsessão -, de um cineasta que esgrime argumentos como espadas afiadas (melhor, como machados: a forma como se entretém a fazer-nos crer que Léon pode ser um "serial killer", por exemplo; ou "raccords", como aquele que junta o barulho de uma porta arrombada ao toque de um sino que anuncia funeral). Mas é um filme, como outros de Skolimowski, em que o desejo, a liberdade têm amputação agendada: o logro, a impotência estão no horizonte, o cinema é fogo fátuo, "idade de ouro" que se escapa entre os dedos. É o que acontece no final a Léon, que esbarra no muro que se interpõe entre ele e Anna. É o que acontece ao espectador-criança de "Quatro Noites com Anna".
Crítica Ípsilon por:
Luís Miguel Oliveira
Espantosa personagem, a deste apagado, solitário e ensimesmado funcionário de crematório fascinado pela enfermeira que mora em frente (e já agora, também é espantoso que ela seja uma figura de mulher bastante banal). A normalidade e as vidas ordinárias têm muitos rostos e alguns deles são fora do comum - é-o o desejo infantil e assexuado deste homem, e o retrato da sua acossada clandestinidade (não é por ser "infantil" que o desejo escapa à "proibição") é dado sempre no balanço entre o burlesco e a angústia. A gravidade desta vai ganhando, e até para nós, espectadores, é um aperto no coração aquele enorme muro com que o filme termina.
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