Escrita Criativa
Rasgos do Portefólio Quotidiano em nome
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I
Tom
Conheço bem os meandros dos aeroportos, as salas de espera, o sítio exacto das casas de banho, quem está do outro lado do balcão, as lojas de conveniência, onde compro sempre sacos de m&m´s e um isqueiro..
O senhor desta loja não distingue algumAs cores, vou comprar um isqueiro; desta vez verde, digo a cor e só depois sei se sigo o plano b, ou se terei de apontar, para o cliente atrás de mim não perceber o embaraço e rubor do empregado, e calmamente indico o segundo, a contar da direita, por favor, lá me faz chegar, orgulhoso, o isqueiro, o amarelo entregou-mo num ápice!, pisco-lhe imaginariamente o olho com cumplicidade em câmara lenta, de missão cumprida.
(São tantas coisas que as pessoas não dizem, mas todo o corpo fala…)
Aconteceu sempre com a naturalidade de hoje. Saio de sorriso aberto.
Passo para a ala dos perfumes. Dezenas de caixas em réplica. Tenho sete cartões esguios para distinguir odores. Esqueço-me do que me levou ali: apanhar o avião. Pareço ter pela frente todo o tempo do mundo, até que no altifalante oiço o meu nome. Corro. Ali estava o avião cheio, dezenas de rostos virados para mim, em fila, certinhos, como os isqueiros, acusavam-me, esperavam.
Da próxima vez vou experimentar o branco, que estará na quarta fila, o segundo a contar da direita, por favor, junto ao amarelo, logo ao lado da prateleira dos perfumes, passo a passo, saberei todas As cores.
V
Álvaro
Da primeira vez a noite foi pacífica e quente. Talvez fruto da idade, tão novinho, eu ansiava aquele dia como nenhum outro. E porque raio não consigo dormir hoje? Nem bebi café! Na outra, a estas horas, ria com os tios de longe, pela noite dentro, adormeci. Vou lá fora ao alpendre. O som dos grilos lembra-me o Verão. O primeiro foi no Outono. Dias pequenos. Folhas caídas. Correu bem, parece-me. Mas que falta de entusiasmo é esta, Álvaro? Ser adulto. Inércia. Que parece ser bombeada para dentro de nós, e pronto, já está, deixas de estar inquieto, sem que te apercebas já estás na casa dos quarenta, amigo da rotina trabalho-casa-sopa-chinelos, seguida da breve estupidificação absorvida pelos olhos, frente ao televisor, dorme bem e até amanhã. Depois, nos rasgos – tão raros – de iniciativa, surgem estas pequenas possibilidades, um segundo casamento, este agarrei-o e hoje, no dia antes de acontecer, surge-me em forma de insónia. Também vai correr bem, parece-me. Não é isto a vida? Começar e acabar?
VII
Andrea
O dia estava solarengo, quente demais. As crianças assobiavam, comiam doces de digestão fácil, aguardando o autocarro que as levava dali para as suas origens. Do outro lado, um bar rodeado de homens que finalmente terminavam os seus ofícios, brindando esse instante com uma cerveja ou sumo. A disposição das cadeiras não era proporcional ao espaço envolvente, pelo contrário, todo aquele espaço era abandono. A senhora gorda, que servia ao balcão, dava calor ao vazio circundante. As falas, os risos das crianças, ao longe, permitiam-me concentração para a leitura. Apenas uma mesa estava ocupada. De repente, entra para dentro daquele albergue alguém que, desde logo, despertou a minha atenção. Era impossível não reparar. A senhora sentou-se mesmo à minha frente. Tinha olhos cor de mel mas amargos na expressão. O corpo controlava a tensão. As malas continham roupas descuidadamente colocadas, onde se viam trapos a sair. Mas quem a observasse, do lado de lá da janela, diria que aquela cigana aguardava calmamente o autocarro. Trocamos de olhares. Sorri timidamente. Ela fixou os meus olhos e não sei explicar o que me invadiu. Pensei o que todos pensariam: que aquela senhora aguardava a hora de partida para um lugar qualquer, só que carregava um olhar entristecido, no corpo de uma mulher lutadora e forte. O brilho daquele olhar esmorecia e apagava-se, dando lugar a lágrimas que tranquilamente corriam pelo seu rosto. O rosto sem expressão, o corpo parado, e o único movimento era gerado pelo brotar daquela lágrima. Num ímpeto, dirige-se para o telefone e diz “sim, vem-me buscar, estou à tua espera”. Aqui, fiquei atordoada e expectante, para num segundo instante ouvir aquela cigana falar para longe, para alguém que eu não via mas a quem ela queria ofender e desabafar. Terá sentido na minha presença a coragem que lhe faltava, cúmplice no desabafo, mesmo sem me conhecer de lado algum, podia dizer o que lhe destroçava o coração? Assim disse: “meu Senhor, ele não vai ficar com os meus filhos, eles são meus.” Quando observo que esta cigana tinha o braço com sangue a escorrer, tenho que sair.
Ainda agora penso naquele olhar.
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