quinta-feira, 25 de junho de 2009

na linha das linhas...



( e como tão bem este texto fala um pouco de todos nós...)



"Hoje fiquei em dormir em casa da Isabel. Fiz lá o jantar para ela e para duas das suas amigas. Isabel é minha amiga nos céus e nos infernos. Dos finais de tarde à beira mar numa esplanada, às noites frias e agrestes de Janeiro passadas ora à conversa em confidências e em desabafos, ora na senda de um filme qualquer. As duas amigas de Isabel responderam com um sim, ao convite que esta lhes fez e com antecedência fui avisado de que seríamos quatro à mesa. As duas amigas de Isabel que mal conheço, também têm estado ao lado de Isabel. Isabel anda mal. Isabel está a morrer aos poucos por amor. O grande amor dela. Destrói-se e eu já não lhe consigo chegar. Quando se morre por amor, ninguém nos consegue chegar, porque nos chega e sobeja sempre aquele por quem se morre. Nunca tive a capacidade de a trazer à luz. Conforto-a pontualmente e ofereço nem que seja o meu silêncio. Companhia silenciosa que exorciza a ideia da solidão. Em claro sinal de rendição, já só me remeto a um simples encolher de ombros, quando Isabel me expõe todas as suas razões para justificar os seus sentimentos e num perspectiva mais ampla, todos os seus comportamentos destrutivos. É impressionante verificar a dimensão das razões que conseguimos desencantar não sei bem de que parte da mente, para justificar a ideia de alimentar uma figura dentro de nós que está longe de nos corresponder como queremos. O grande amor tem esse poder. Um amor que visto de fora por outra testemunha da destruição, é amor sem amor porque é obsessão. Isabel está obcecada por uma tal figura que ela define categoricamente, como sendo “o grande amor de toda a minha existência”. Há oito meses atrás ainda a entusiasmava e apoiava, mas rapidamente compreendi que só Isabel é que estava “presa” a essa figura – ao grande amor da vida dela. De toda a sua existência. Conseguimos ser absolutos quando “temos” um grande amor a respirar dentro de nós. Ele desprendeu-se há muito tempo de Isabel. Estiveram juntos um ano. Um ano pleno de amor e mais perigosamente para Isabel, pleno de amor no sexo e sexo pleno de amor. Quando na cama a ligação espiritual quebra barreiras com a parte física e o sexo se torna indescritível e desmesurado, a obsessão por parte de um dos “abençoados” é quase certa - em caso de ruptura claro. E depois estamos a ver que sim. Num discurso onde expressões como “Com ele transcendi tudo.”, “Nunca vivi nada assim”, “O sexo era do outro mundo”, se tornam bandeira de um mastro de uma embarcação que há muito apodrece no mar de nenhures, facilmente se identifica a ausência total da razão. Já agora Isabel, como é o sexo neste mundo? Corrijo-me, não é ausência total da razão, é apenas a preponderância da emoção. Mundo interior e emocional a devorar qualquer capacidade de estabelecer a ordem racional e lógica para caminhar em frente. Consolida-se a obsessão quando conseguimos atirar para cima de nós o expoente máximo na linguagem do amor sem fronteiras: “ Nunca mais vou amar alguém assim”. Intensa. Não a expressão, mas a loucura do amor que não é amor e que ela reflecte – a obsessão. A expressão, essa “só” nos mergulha no maior castramento que nos conseguimos impor e a partir do momento em que sentimos essa ideia como verdade imutável, passamos a respirar a mesma como quem respira oxigénio. Essa expressão, podemos também usá-la quando tentamos fugir ou afastar alguém que se aproxima de nós com a intenção de nos amar. É como a palavra destino – aniquila qualquer hipótese de ir por outra via. Justifica por si só tudo.O que é que queres que eu faça – questiona-me Isabel. Eu amo-o, exclama em desespero não querendo sequer saber se eu tenho a solução para ela. Como é óbvio não tenho. Ninguém tem. Eu amo-o! Tu não amas Isabel – penso. Não lhe digo porque já me repito. Antes de me repetir, era bombardeado por todos aqueles argumentos possíveis e impossíveis e imaginários e reais e tudo e mais alguma coisa que Isabel consegue inventar, de tal forma que cheguei a acreditar que a tal figura iria mesmo voltar para ela. Sério. Comecei a acreditar nos milagres bíblicos. A história deste grande amor seria assim – digna de figurar nos ensinamentos de Deus. E porquê? Porque é o “grande amor”, porque “não há ninguém assim”, porque “ele é único e raro”, porque “tem os valores perfeitos que encaixam e completam os meus”, porque “o sexo é…” Merda! Já sei…O sexo é assim, assado, cozido, refogado e todas as formas de conceber os alimentos das várias cozinhas étnicas de todo o mundo! Já sei! Ah! E porque “Nunca mais vou amar alguém assim”. Aniquilaste-me Isabel. Agora só penso – nada te digo. Encolho os ombros. As tuas hipóteses de salvação são fuziladas. És tu que lhes apontas as carabinas.
Quando estamos obcecados por alguém lembramos tudo o que vivemos, mas pior do que isto, é mesmo esquecer viver o que não estamos a viver. Lembramos todos aqueles pormenores e hábitos que eram irritantes noutras pessoas, mas que no amor da nossa vida são provas comprovadíssimas de que existe um charme que ninguém é capaz de igualar. O grande amor da nossa vida pode limpar o ranho à manga da camisola, porque nós sorrimos e desde logo dizemos – tu és de facto único ou então – ai amor és tão lindinho. Limpar o ranho à camisola é de facto um gesto repleto de charme. O tal charme inigualável. Ao grande amor nada precisa de ser desculpado porque tudo lhe é admissível. Também somos especialistas em desenvolver obsessões. É quase como se tivéssemos que acreditar tão profundamente em algo ou em alguém, para simplesmente esquecer o facto de que não acreditamos em nós próprios. Realidade que nos dói. Isabel come pouco e dorme ainda menos. Sim, porque cozinha, só mesmo no sexo assim, assado e cozido. Refugia-se no trabalho – último reduto de quem de repente na ânsia de querer esquecer ou não querer esquecer, se lembrou que de facto tem um trabalho. Quando estamos obcecados, o mundo exterior não é processado. O zombie no qual nos tornámos tira do que vê cópias a preto a branco porque a mente, em todo e qualquer sítio onde o nosso corpo possa estar, simplesmente está junto do nosso grande amor. Os Zolofts, Prozacs, Dumiroxes e afins não a trazem de volta, mas pelo menos dão de comer ao zombie em que nos tornámos. E depois onde quer que o corpo vá, palpita um coração desenfreadamente porque em qualquer lugar pode acontecer o encontro com o grande amor. Nem se sabe muito bem se queremos muito que isso aconteça ou se sentimos total pavor. Quando estamos obcecados o carro do nosso grande amor está em todo o lado, com excepção de que a matrícula é diferente. Eu sei que estou obcecada - diz-me Isabel quando está menos obcecada. A primeira coisa em que penso quando acordo é nele – remata. Ora, o nosso grande amor tem essa capacidade. Galo despertador pela manhã, sol durante o dia, contador e embalador de histórias à noite, numa noite igual a todas as outras, onde não se adormece por cansaço mas por esgotamento total. Fabuloso. Vou então ao tal café e depois volto aqui para vos apanhar; peço-vos desculpa - digo para as três, Isabel e as suas duas amigas, as tais amigas para quem fiz o jantar. Mas só podia ser mesmo agora – acrescento na tentativa frustrada de me desculpar o que não me tem desculpa. Enquanto fecho a porta do apartamento de Isabel, ouço-a gritar da sala - “Boa sorte”. Chamo o elevador e na espera começo a sentir a ânsia…algo que me incomoda…algo que me acelera o ritmo do sangue quente nas veias. Normal – penso, tentando acalmar-me. Afinal vou beber café com a minha grande obsessão e que é a mulher com quem deixei de acreditar no tal grande amor. Já não a vejo há oito anos…"


Lorenzo Monsanto

quinta-feira, 18 de junho de 2009

em porto côvo ao som de koop, "e o mar a dizer sou o mar, o mar" ... e dois filmes brilhantes a provocar-(me)...





Climas
(...) duas figuras solitárias arrastadas pelo seu clima interior eternamente em mudança.
Filmado a preto e branco , “La Frontière de L’aube”
recupera a poesia e a alma do cinema de Philippe Garrel

pedro sena-lino





na apresentação de 333 no Porto (excerto)


"os livros são a primeira experiência de salvação. sim, a literatura salva, como disse uma vez Eduardo Prado Coelho: sentado nas tardes de Verão a devorar História, e a ser devorado por ela, percebi que todos os inícios estão por criar, e que existimos porque temos de criar os nossos inícios permanentemente. que o próprio facto de estar vivo é essa força de recriação do começo: as fórmulas, conhecemo-las: foi por isto que, ou eu nasci aqui. nascem tantas vezes de feridas, e por isso são apenas as feridas que escrevem; e ao situar esse lugar novo, esse início, sabemos sempre que é a partir de uma ferida, da energia que trouxemos ao mundo com essa mesma dor, que recomeçamos. e ao dizer: «eu vou nascer aqui», levamos o mundo connosco. é nos livros que bebemos que nunca mais paramos de nascer, em todas as direcções, por onde se atire o sangue e o sonho, por onde os nossos braços precisem de chegar e não tenham movimento para isso. num livro, dentro de um verso, de uma história, a nossa verdadeira medida de humanos, «medida desmesurada», se exprime.e porque queria agradecer a capacidade de múltiplas salvações que cresci em tantos livros, que este livro, este 333, me escolheu. por isso vos quero falar de três triângulos. o primeiro, a sequência de números quer repercutir a sequência do três, a unidade de Deus, mas também a nossa unidade connosco: o que somos, a imagem que projectamos, o que seremos para lá. mas também quer este livro reproduzir todas as relações que se estabelecem entre humanos e livros. porque a energia que sustenta o livro é também um triângulo, o autor e o movimento em que corre e se esboroa na criação, e que pode ser o narrador ou não; a personagem; e o leitor.quando este livro me pediu que o ajudasse a existir, todas as linhas da minha vida pareceram cruzar-se, como quando amamos alguém do fundo da nossa história, num clarão onde os dias perdidos, as noites esmagadas, as manhãs negadas e as tardes expulsas parecem unir-se num clarão, e justificar a nossa história até ao mais pequeno lugar dos nossos corpos. "
Porto, 16-6-9

quarta-feira, 17 de junho de 2009


Um dia ele levantou-se e gravou numa fita tudo o que as pessoas diziam na rua. Passou o dia às voltas, a entrar e a sair de autocarros e a entrar em todos os grandes estabelecimentos. Depois voltou para casa. Gravou coisas como: Nunca, talvez sim, isso também me interessa, tudo o que quiseres e por agora nada, continuo à espera, não acredito que tenhas forças, dou-te amanhã, não há dinheiro, não há dinheiro, não há dinheiro, vai-te embora, vem, vai-te embora, volta, estou sozinho, já não me interessa, ganhámos, tu dizes-me cada coisa, corre, corre, corre, demasiado tarde, demasiado cedo, tivesses dito, outra vez sozinho, se não fosse tão bonito, deus sabe que tentei, ninguém sabe quanto, não me ama, um trabalho novo, sapatos novos, carro novo, quase nem posso mexer as mãos, sou jovem, já não sou tão novo, que esquisito, sozinho, se não chover ou se calhar chove... e no princípio e no fim da gravação:

Amo-te, já não te amo.
Ray Loriga

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